sexta-feira, 10 de dezembro de 2010


 Entrevista a Filipe Cândido

Como criador deste blog é com enorme prazer que início este espaço de entrevistas com Filipe Cândido, um jogador com vasta experiência no Futebol Nacional e Internacional, com um conhecimento invulgar das diversas áreas que o atravessa e com um carácter que muito dignifica este Desporto. Para além de um grande jogador…poderá estar aqui um grande treinador!

Filipe Cândido: Em primeiro lugar, e antes de abordar os temas, tenho de agradecer o convite feito pelo meu amigo Nelson Pinho. Tendo em conta a qualidade dos assuntos e a forma como são debatidos neste sítio, aceitei de imediato expor um pouco da experiência adquirida durante a minha carreira como futebolista profissional, assim como algumas ideias pessoais. Saliento que em 15 anos de Futebol profissional trabalhei com 30 treinadores diferentes.


Ideias de Futebol: Iniciando a nossa conversa sobre o teu percurso futebolístico, sem dúvida que a passagem pelo Real Madrid foi um dos momentos marcantes…


Filipe Cândido: A primeira impressão que fica em relação ao meu percurso é que, podia ter sido melhor tendo em conta a esperança depositada em mim enquanto jogador da formação do Sporting C.P. e da Selecção Nacional. Sabendo o que sei hoje e com todo o conhecimento adquirido enquanto jogador e estando por dentro das relações existentes no Futebol, digo que foi a carreira possível da qual me orgulho. Formei-me naquele que é considerado um dos melhores clubes a nível da formação, pelos talentos que tem formado ao longo dos anos, o Sporting Clube de Portugal. Tive o privilégio de jogar naquele que é para mim o maior clube do mundo, o Real Madrid (contratado com apenas 16 anos), apesar de só ter jogado na equipa B e equipa C, acabei por partilhar vários treinos com a equipa A, que tinha nesse ano jogadores como Raúl, Hierro, Buyo, Sanchis, Seedorf, Redondo, Roberto Carlos, Suker, Mijatovic, Alkorta, Guti, Amavisca, Zé Roberto, Secretário, e muitos outros grandes jogadores que se sagraram campeões de Espanha e no ano seguinte Campeões Europeus. Parece fácil treinar com tanta qualidade à nossa volta. A bola vem sempre redondinha, tens sempre linhas de passe seguras, e no meio deles também te sentes craque. Só quem passou por aquele clube pode ter a noção da sua dimensão, mas posso dizer que todos os dias a cidade desportiva do Real (antiga cidade desportiva) tinha uma assiduidade de milhares de pessoas para verem os treinos das suas equipas profissionais (A,B,C), pagando 500 pesetas (3 euros) pela entrada. Eu vinha do Sporting que apenas tinha um campo pelado para treinar e um campo relvado para jogar. Ali tinha 4 campos relvados, 2 pelados e ainda um pequenino relvado que se chamava maracanazinho. Registo que era proibido treinar de caneleiras (apenas usávamos uma meia pequena), a justificação deles era que no treino tinhas de aprender a respeitar o colega quando existia contacto e que não era para dar pancada. E só nos deixavam ligar os pés se tivéssemos tido uma entorse e viéssemos de lesão, pois por outros motivos não deixavam (diziam que enfraquecia a tibiotársica). Enfim, era muita diferença tendo em conta aquilo a que vinha habituado do Sporting. A semelhança entre Sporting e Real Madrid que encontrei foi a nível do Futebol ou a forma como queriam que jogássemos, pois era privilegiado um jogo colectivo baseado na construção desde trás.

Também joguei no Campeonato do Mundo na Nigéria 1999 na Selecção de Esperanças (nº13) e participei no Torneio de Toulon em França, entre muitos outros torneios internacionais desde os sub-15 aos sub-21. Tive várias experiências em diferentes países, entre os quais Bucheon da Coreia do Sul, Lokomotiv de Sófia da Bulgária, Kavala da Grécia, umas mais longas, outras durante períodos curtos. Joguei em todas as divisões dos nossos campeonatos passando por vários clubes (Vitória de Setúbal, S.C.Salgueiros, Felgueiras, Leça, A.Viseu, Imortal, Vila Meã e Lourosa) desde o norte até ao sul e tenho algo na minha carreira da qual me orgulho muito, que foi ter conseguido conciliar uma carreira profissional com uma vida académica.


IF: Ao longo da tua carreira tiveste 30 treinadores! Qual a tua opinião sobre os métodos de treino que vivencias-te?


FC: Em Espanha no Real Madrid (1996/97), parece-me importante dizer que eles privilegiavam a posse de bola no seu modelo de jogo, por isso fazíamos muitos treinos de manutenção de posse de bola ou circulação da mesma, mas mantendo um posicionamento específico em campo por cada jogador. Mas a carga de treino era feita muitas vezes de forma convencional, sendo utilizado para além do campo de treinos, uma mata (mais utilizada no período preparatório) perto da cidade desportiva que tinha um circuito para correr. O trabalho de musculação também fazia parte da nossa preparação. No período preparatório tínhamos duas sessões de treino diárias e no período de competição apenas à quarta-feira fazíamos dois treinos (manhã e tarde), onde uma destas sessões era no ginásio.

Na Coreia do Sul ao serviço do Bucheon (Fevereiro de 2005), apenas posso falar do mês que estive ao serviço deste clube, que coincidiu com o Período Preparatório da equipa. Por falta de adaptação acabei por regressar à minha antiga equipa em Portugal. Durante este período eram realizados 3 treinos por dia; o primeiro treino começava às 7h30m e era realizado um jogging de 6 a 8km; a segunda sessão começava às 11h e fazíamos treino físico através de circuitos onde se incluíam saltos e velocidade; finalmente a terceira sessão às 17h onde era feito um trabalho de campo com bola (com vários exercícios de posse de bola; combinações ofensivas com finalização; ou treinos de conjunto).

Na Bulgária, no Lokomotiv de Sofia (Janeiro/Maio 2006), fui transferido durante o mês de Janeiro, por isso cheguei no Período Preparatório (PP) de inverno e permaneci até ao final de época. Durante o PP foram quase sempre realizados dois treinos por dia onde na sessão da manhã realizávamos muitos exercícios de corrida continua, intervalados. Devido ao estado do tempo (tive treinos à temperatura de -5 graus ou mais frio) era difícil obter sucesso naqueles exercícios com bola pois o campo estava sempre coberto de neve e treinávamos com bolas cor de laranja. Só quando fomos estagiar, primeiro para a Grécia e depois para o Chipre (ainda antes do inicio do campeonato) é que deu para perceber o tipo de trabalho que a equipa técnica fazia. De manhã fazíamos trabalho de corrida contínua; circuitos de força sem bola; intervalados. Da parte da tarde, para grande surpresa minha eram realizados exercícios de posse de bola com transições, quer em espaços reduzidos quer em campo inteiro; era feito muito trabalho de organização defensiva e ofensiva tendo em conta o modelo de jogo.

Ao serviço do A.O.Kavala, na Grécia (2006/2007), o período preparatório durou cerca de 6 semanas. Estivemos a mais de 2000 mil metros de altitude a estagiar durante 20 dias, nas serras da Makedonia, nesse estágio realizávamos sempre 3 treinos por dia: 1ª sessão às 7h da manhã depois de tomarmos umas vitaminas e aminoácidos, mais uma tosta pequenina com mel. Quase em jejum fazíamos corridas contínuas e intervalados; 2ª sessão às 11h da manhã depois do pequeno-almoço, trabalho de ginásio (musculação); 3ª sessão às 17h, era realizado muito trabalho táctico e técnico através de muitos exercícios de posse de bola e jogos reduzidos. No período competitivo, passámos a ter apenas uma sessão diária excepto à quarta-feira pois neste dia de manhã fazíamos treino de musculação.

Em Portugal, na Super Liga, primeiro no Vitória de Setúbal (1997/98), antes de mais importa dizer que tive 3 treinadores neste ano, mas de uma forma geral realizávamos um tipo de trabalho “físico” essencialmente de forma convencional com corridas à volta do campo ou intervalados. Exercícios de posse de bola, alguns jogos reduzidos, “peladinhas”, “meínhos”, exercícios de finalização simples, treinos de conjunto (sempre à “quinta-feira”) faziam parte do trabalho que era feito com bola.


No Sport Comércio Salgueiros, ainda hoje me lembro dos treinos do Período Competitivo porque foram praticamente iguais durante o meu primeiro ano. Mas no Período preparatório eram duas sessões diárias que estavam partidas, uma das sessões era para dedicar mais ao aspecto físico (circuitos de força, intervalados ou corridas continuas). A semana no período competitivo tinha o treino de recuperação do jogo (terça-feira se o jogo tivesse sido no domingo); quarta-feira de manhã era físico (nem víamos as bolas) e de tarde fazíamos exercícios de posse de bola, jogos reduzidos e peladinhas; quinta-feira era mais posse de bola e um jogo de 7x7; na sexta-feira era treino de velocidade e de finalização, com peladinha para terminar o treino; e no sábado era o treino de velocidade de reacção no inicio e terminava com uma peladinha onde mudavam as regras de 5 em 5 min. (um toque; só com o pior pé; só golos de cabeça).


Na 2ª Liga, no Felgueiras (2000/02) é difícil falar de forma muito especifica porque aconteceram 9 trocas de treinadores em 2 anos mas entre o trabalho convencional e o treino integrado não houve grandes variações. O que registo é que quando um treinador chegava quase sempre dizia que o problema era que a equipa tinha um défice físico, e como imaginam foram muitas “pré-épocas” dentro do período competitivo.

No Leça (2002/04), foram dois anos também com 8 trocas de treinadores e o tipo de trabalho feito variou entre o treino convencional e o treino integrado.

No ano em que estive no Académico de Viseu (2004/05), foi a primeira vez que o tipo de trabalho foi diferente do habitual, quer em Portugal quer no estrangeiro. Não posso afirmar convictamente que o tipo de trabalho era baseado na periodização táctica. Percebi que embora a maioria dos exercícios estavam direccionados para uma forma de jogar, tendo em conta o modelo de jogo que o treinador queria implementar, e com exercícios que procuravam uma adaptação dos jogadores a essa ideia de jogo, ainda assim, algumas vezes fazíamos exercícios com circuitos com bola que se assemelham ao tipo de treino integrado.

No Imortal de Albufeira (Julho/Dezembro 2005), voltei a um tipo de trabalho “habitual” variando pelo convencional e pelo treino integrado.

No A.C.Vila Meâ (2007/08), foi realizado um tipo de trabalho onde prevalecia o treino integrado.

No Lourosa F.C. (2008/2010), o tipo de trabalho foi difícil de identificar claramente porque foi uma mistura entre o treino convencional e o integrado. Registo que o último treinador que tive, apesar de só ter sido durante as ultimas 5 semanas, realizou um tipo de trabalho baseado na Periodização Táctica.


IF- Que Ideias gostavas de deixar para uma melhor formação de jovens futebolistas?

FC: De forma muito resumida, a minha ideia para a formação passa por poder ensinar às crianças um Futebol de qualidade, que tenha por base alguns princípios que para mim são fundamentais para que haja uma mudança na forma como se joga em Portugal. Excepto 3 ou 4 equipas em Portugal, parece-me que o estilo do nosso futebol podia ser um pouco diferente, podíamos privilegiar mais o aspecto táctico e técnico, um pouco à imagem do Futebol que se pratica em Espanha (como por exemplo em todas as suas selecções). Em Portugal utiliza-se em demasia um “Futebol força”, a luta, a bola na frente e ganha as segundas bolas, a bola longa em diagonal para o ponta de lança que tenta desviar para os extremos ou médios. Temos de incutir e ensinar os nossos miúdos a saber guardar a bola, em criar linhas de passe ao colega, em saber utilizar um jogo posicional que permita circular a bola em segurança, ser objectivos pelo golo mas sem a ânsia da procura pelo golo. Devemos privilegiar mais a posse de bola e circulação e incutir esse tipo de Futebol, mesmo que no final o resultado seja uma derrota (sou da opinião que jogando um futebol de qualidade estamos mais perto da vitória). Temos de saber explicar que esse é o caminho para o sucesso deles no futuro, para serem melhores jogadores, temos de proporcionar prazer em ter a bola, assumir o jogo desde trás em construção. Durante estes 15 anos como profissional percebi a dificuldade que a maioria dos jogadores em Portugal, principalmente os mais jovens nos planteis profissionais, têm em se posicionar em campo. Os treinadores no Futebol profissional têm de perder muito tempo a corrigir aspectos que supostamente já deveriam estar adquiridos. É um problema de base que certamente não é trabalhado, o táctico. Parece-me que têm uma grande dificuldade na leitura de jogo, tendo em conta alguns princípios fundamentais e básicos. Fico com a sensação que estão em jogo, mas não percebem o jogo e que não entendem o que o jogo lhes vai pedindo à medida que se desenrola. Penso que existe também uma grande dificuldade em ter e manter a posse de bola e esses aspectos parecem-me importantes para existir uma evolução no nosso tipo de jogo. A maioria das equipas em Portugal não dá 10 toques seguidos entre cada jogador no espaço ofensivo (experimentem contar), não proporcionam um tipo de jogo de qualidade para que isso aconteça. Mas são os treinadores em Portugal, principalmente os da formação, que têm a responsabilidade de reflectir sobre o jogo e ao mesmo tempo procurar a evolução.










9 comentários:

  1. o teu maior erro foi teres ido para o Real Madrid. Como o Tinaia, Zeferino e tantos outros..

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  2. Hei amigos!
    Filipe para mim és bola de ouro!
    Nelson devias ponderar uma carreira jornalística...A sério pensa nisso.

    Abraço
    Tozé

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  3. A ambos os colegas de faculdade e a quem dou mt valor por todo valor que têm e o potencial para serem ainda maiores, aqui fica o meu abraço.

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  4. Excelente entrevista a um jogador com um percurso invulgar mas que desperta curiosidade a quem como eu gosta de futebol. O seu testemunho parece-me muito interessante para jogadores talentosos que estejam a passar ao lado de uma grande carreira, pois mostra não um jogador frustrado e desanimado, mas alguém cuja a paixão pelo futebol é tamanha que nem algumas desilusões (e é inegável que as há) lhe tiraram a vontade de jogar e treinar, independentemente de estar no Real Madrid ou no Vila Meâ. O facto de ter conhecido as mais variadas realidades do futebol constitui uma grande virtude para uma futura carreira como treinador. Os meus parabéns ao Nelson Pinho pela qualidade do artigo.

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  5. Parabens pela entrevista. Gosteii muito, ficou show de bola um grande abraço do seu amigo Brasileiro Roberley Assis (Robergolo)

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  6. Óptima entrevista, muitos parabéns. Pena ser tão curta, parece que muita coisa ficou por dizer. Continuação de bom trabalho.

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  7. Grande homem grande jogador com excelente conhecimento do jogo é verdade que já não tem 20 anos mas pelo que conheci em 5 semanas de trabalho no Lourosa merecia muito mais.
    Foi um prazer ser teu treinador

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  8. Será que é desta que começo a gostar de futebol...?

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  9. Gostei da entrevista, vou mandar buscar vc para o Brasil pra fazer as entrevistas aqui gajo, um grande abraço

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